COMO SE O MUNDO FÔSSE UM PARQUE
Jorge de Sena, avisadamente, aconselhava que todos os textos críticos deveriam ser encabeçados pelo título de Wackenroder: “Efusões Sentimentais de um Irmão Leigo, Amante das Artes”. Jorge de Sena tinha razão…
Plantar flores de chá e abrigar as memórias, executar gestos ancestrais de todos os tempos e atracção pelo imenso saber do sabor a chá, mais ou menos límpido ou turvo de pó, restos de folhas que o foram, perspectivam harmonia, respeito, pureza, tranquilidade. Apreciar o chá e dissolver o corpo no universo eterno: o mundo de Ana Maria é rico, grande.
Mundo que não pressupõe ponto de vista único e espectador imóvel. Este tem que trabalhar, impelido para acompanhar todas as alterações de perspectivas e camadas de ilusão. Na sua força expressiva, feita para fascinar, tem essa qualidade e essa verdade, um caso à parte que cativa ao primeiro olhar, nos impede de ficar aqui parados e obriga a contínuos regressos ao pormenor. Conteúdos nada caóticos transmitem emocionalmente crónicas para quem aprecia a vida. A envolvência impregna a interpretação, a racionalidade e a intuição, no traduzir destes espaços habitados, seus atalhos e derivações, nunca descontextualizados. Com a construção de amplitudes espaciais desconhecidas, imerge o espectador em dimensões quase cósmicas. Já não estamos num sonho, pois não? quando, por fim, a realidade nos assalta.





Com o espectador fica a ideia de que a personalidade de Ana Maria se mostra em cada linha que pinta, com tanta clareza que parece conhecê-la há muito. Caso raro em que a obra de arte faz nascer o desejo de conhecer o artista e com ele fazer amizade. O trabalho criativo de Ana Maria é exemplo de autêntica e literal fusão do artista e resultado artístico.
Cada uma das composições inventa um tempo diferente, sem medo, aborrecimento, passado ou futuro. Novas e moderníssimas formas, para criar múltiplas encenações com figuras, todas vivas, todas prontas para o movimento, ao mínimo sinal de agilidade mental.
No abraço das formas inovadoras, configurações do prazer e da vivência da condição do amor impossível, mas também amigos imaginários, muitíssimo carinhosos, necessários como o mar, revelam-se autenticidade e identidade sem contágio, aparentemente ausentes de genes de correntes artísticas. Será necessário excesso gratuito de erudição para inventar genealogia para a pintura pura de Ana Maria. Talvez reparta impressões de mistério com a subversão surrealista de Lewis Carroll. Também os Mestres das Iluminuras podem ser invocados, na grande beleza cromática do global, sempre decorativo no uso harmonioso da cor, também nos intrincados ou isolados pormenores de pequenas dimensões. As semelhanças terminam aqui, já que nos “vitrais góticos” de Ana Maria não há esboços desenhados para preencher, apenas o fino pincel desliza, indiferente ao suporte, seja óleo sobre tela ou aguarela sobre papel.
Neste universo de realismo mágico, onde a lei é o desejo, tudo é promessa de felicidade, objecto belo, espirais arco-íris, perpetuamente tempestades de afectividades, libertação da lógica, viagens. As emoções, profundas, juntam-se ao fantástico, em melancolia romântica, pelo apelo forte das imagens, formas aparentemente sinceras, amistosas, difíceis de elucidar. A imaginação não perdoa!



Prazer e encantamento garantidos por temas misteriosamente nostálgicos, desenvolvimento pleno do pensamento formal. Tem um eco que vem da presença constante de surpresa na forma, cor determinada pelo clima poético, delicadeza na textura criada por velaturas profundas habitadas por complexidades, sobreposição de histórias. O poder da ideia nunca esquecido.
Simples, elegante e directa, Ana Maria representa criação pura. Grande sofrimento e grande alegria vividos na execução. Sempre a testar possibilidades e a explorar a linha delicada da entrega completa às ilusões que fazem a eterna juventude do filósofo e do poeta, sem paradoxos nem meias - verdades.
Para quê explicar o óbvio.
Não é para perceber. Joaquim Carvalho Mota