Se me desses um jardim de amor pintava flores de chá e abrigava as minhas memórias
Fazia crescer impressões para transportar num colar que me ensinava a amar.

Foi no dia da passagem de todas as passagens que olhou a margem, expôs rios coloridos e descobriu a transparência, a leveza, e todas as coisas belas que puderes esperar. Não tinha medo de pintar.
Nem sempre foi assim, noutros tempos vivia na ingenuidade, preocupada apenas com a evidência, produzia para existir. Não sabia que o tempo tornava a arte num mar grandioso de ondas contínuas sem descansar, sem sossegar, que o seu ”ser” se revelaria numa espiritualidade resistente, combatente, à custa de luta, da tensão e do desejo.
Na dúvida, encontrou a pacificação. Na reflexão avaliava a vivência sempre perdida e antecipava a experiência da pintura como futuro, metáfora e interpretação - única possibilidade estética. No sono misturaram-se as imaginações desencantadas e as prendas entregava-as ao céu, fazendo um pacto de compreensão e de felicidade com os homens. Habituou-se a viver as vezes do presente descobrindo que era possível percorrer tempos diferentes ainda que os lugares fossem os mesmos, como se cada ressalto fosse uma ponte, cada linha medisse uma história, como se os desenhos fossem poemas de ideias para cada limite. Escutava em quatro tempos; de um nunca ouvia, do outro amanhecia, do terceiro embrulhava e do último despedia-se. Nunca abandonou a memória desse sentir.
Descobrira que a conduta exercia um efeito destruidor, e no entanto era ela mesmo fonte de toda a criatividade. Onde encontrar a relação?
Ao nascer do sol acordava com uma réstia de pressão, partia rapidamente, com medo que a natureza se adiasse. Quando o ar finalmente pousava e o vento se tornava generoso, as figurinhas redondas subiam e desciam muito lentamente, a luz avançava. Afastava as mãos, alisava o pensamento e muito quieta procurava a natureza que não lhe exigia nada. O difícil não era começar mas aceitar o início como um defeito. Sabia que as “coisas” existiam se acreditasse nelas, era preciso encontrá-las. Delas herdara a esperança, o saber esperar. Pensava amarelo e pintava erros que fugiam da tela para o entardecer. Sem clareza desaparecia o sentido. Recolhia-se no medo sem agitação, no sofrimento sem dor. Das profundezas a tristeza impunha-se, amarrava-lhe o corpo e era só com as mãos que resistia, encostada à sombra , via a alma nos traços incompatíveis , ligados ao instinto e ao conhecimento . Não aceitara desistir do desespero, nem da tontura, nem do infinito, e novamente estendia as cores para se iludir. Via com os dedos as sombras e era nessa brincadeira de fazer e desfazer que se entusiasmava. Jogar, esconder, imitar e simular. O jogo absolutamente imperfeito.
Aprendeu a conhecer a alegria no movimento de um pequeno sinal ou num olhar afiado. A sua missão era quase animal - masculina e feminina. Escolhia e Decidia.
De vez em quando criava o labirinto para reencontrar o olhar enquanto esperava pelas coisas que circulavam , reparava as linhas que nunca cruzavam, vigiava a distância e preparava as trajectórias que se misturavam com pontos de luz que davam sombra ao ar, até que os espaços se avolumavam, confundindo a geometria da distribuição, então o sentido regressava. Um sorriso substituía o escuro e as formas exploravam a angústia . Embrulhava-se no pormenor e por aí ficava, era um momento precioso, que fazia deliciar o pensamento, uma espécie de transcendência itinerante, a fazer circular as emoções . Voltava sem pressa, mas firme.


As formas, elas mesmas, têm qualidades de beleza, bondade e amor e como tal podem ser amadas e conhecidas, num instante, não é possível recordar a sua visão mas a agitação que determina a maneira como arriscamos um afecto. Através de um ligeiro inclinar da cabeça escutamos um sinal de agrado ou de negação, de afinidade ou de transgressão. Quase tudo se diz no amor ou não. Por isso, protegem-se das palavras, das que se instalam em pensamentos repetidos, imitações obsessivas, que nos condenam às ideias feias. Nesse torpor não ficam pesadas, nem grandes, nem assustadas. As formas, essas , suspendem-se ao sol e é esse calor que as mantém ligadas ao fio da terra.
Ao arrefecer terminava os ensaios e divertia-se. Era assim que escutava as razões, que habitavam as entranhas mais profundas. Guardava todo esse saber numa vértebra que às vezes doía e lhe dava tempo para pensar, não sobre as coisas mas sobre o perceber , como se o conhecimento fosse pausa, para reunir tudo o que há em nós …. Lugar habitado e nostálgico , enfeitiçado para sempre pela dor com as contracções da carne a saber a corpo. Aceitou que assim pousada, viveria na distância entre a terra e o início do ar e percebeu que é no intervalo que tudo se explica é nesse momento que riscamos a torre para construir a utopia . Enquanto esperava pelas ideias, um outro medo aproximava-se, especial, enigmático, dele se libertavam gestos ancestrais de todos tempos... atraídos pelo imenso beber do sabor a chá.
Seria a arte o refluxo das árvores com braços? dos homens floridos ? Das histórias que estão nas distâncias que ligam as coisas? Como se o mundo fosse um parque?
Compreendeu assim que viver é colorir os fios que circulam, formando redes de destinos e que a beleza está nas linhas que se formam, o amor na cor que as liga e a bondade na delicadeza com que se cruzam. A arte , ainda não a realizou, ao nível do sublime, porque só a maior de todas as fragilidades o permitirá - Encostou os olhos ao entendimento e encontrou o "amor belo" – Inteiro no fim.
Praia da granja , Setembro de 2010
ana maria











o inverno do chá