"Pintura Para Católicos e Não Católicos"
Diz Henry Miller que se alguma coisa divina há em Deus é a imaginação. Ele atreveu-se a imaginar tudo.
Desde que me pediste para colaborar neste projecto tenho andado às voltas com o pensamento. Quis propôr-me um conceito novo no meu trabalho, realizar uma forma de intervenção mais próxima das propostas contemporâneas de vídeo e instalação. Reconheço que tenho visto coisas muito interessantes e também tenho algumas ideias. Pensei transformar esta galeria numa caixa, as paredes seriam forradas de panos pretos, o espectador seria convidado a perder-se, sem saber para onde dirigir o olhar, ameaçado pelo mistério do improvável cairia na dúvida absoluta de si. Pensei cobrir o chão com ripas de madeira e paletes que construiriam volumes, que se elevariam do solo até ao tecto, grafitava as paredes e obrigava o visitante a permanecer no espaço o tempo suficiente para encontrar a metáfora da desordem. Pensei utilizar um microfone que gravasse todos os sons daqueles que entrassem dentro da sala, de seguida, esses sons seriam reproduzidos obrigando-nos a ouvi-los repetidamente como se as nossas palavras nunca tivessem sido ouvidas por nós próprios.
Pensei convidar alguns amigos para dançarem das três à meia noite num baile de música gravada que terminasse numa alucinação e num frenesim sem fim. Pensei instalar a sala da minha casa e expor o meu vídeo, os meus filmes, a minha música, as minhas fotografias para sentirmos que a nossa individualidade se dilui na presença dos outros e que a essência da natureza humana tem que estar noutro lugar. Pensei apelar à consciência dos grandes problemas do nosso tempo, pedir a um arquitecto para fazer o projecto para o museu dos detritos, onde fosse obrigatório tirar fotografias para que os homens se lembrem e recordem com os seus filhos a porcaria que têm feito.
Pensei escrever mensagens de liberdade dedicadas a tamri, a neivisit, a oilande, a meisil e a melike. Pensei noutras coisas também.
Como vês ideias não me faltaram. O que é certo é que as abandonei, faziam-me desanimar, ou por achar que não atingiriam os objectivos ou por pensar que não eram suficientemente originais, é verdade. Mas por outro lado um passeio fazia-me regressar ao eternamente "inútil" da Arte.
Gosto de pintar, de sentir os movimentos da minha inquietação. Passo horas, algumas dolorosas, apenas com a tela, um pincel e as tintas a dar cor a uma forma nova, que tarda em aparecer. Está lá tudo: a dúvida, a cidade, o isolamento, as montanhas verdes a loucura, o egoísmo, a destruição, a imagem, mas também a alegria e o encanto da metafísica dos sabores da horta...... este é o meu caminho.....50 anos e sobrevivemos as duas - eu e a pintura, porque sobrenaturais são as pedras, o sol, o mar e as luas.
Deus o que é, se a ele dedico horas de pintura.
Lugar do sacrifício o atelier. A frente da tela é o lugar da morte, do avesso, o lugar da vida, às vezes fechado no armário como se fosse adolescente, tinta em tubo de ensaio.
Se alguma vez morrer, vou voltar à terra. Gosto da terra,as placas de lamas grafitadas pela ponta do guarda chuva fazem das nossas memórias, sensações macias que mostram que a terra se pode moldar e que a natureza em nós é primitiva. É como se tivéssemos pertencido sempre ao pântano, porque no princípio a terra era lodosa e maleável e só sob a a acção do calor liberto pelo sol é que a terra começou a inchar e as formas empolaram-se e foram fixadas por finas membranas.
Onde está este mundo?
É necessário encontrá-lo não para modelo, mas para matéria original. Mundo do semelhante, da dupla existência que nos persegue feito sonho, porque a metáfora refresca o entendimento e dá força para não desistir de o salvar.
.....tal como no princípio do mundo quando cavamos a terra, abrem-se bocas que gritam.....e uma voz responde:
-Cala-te que tudo criarás e tudo comerás.
-A alma se devorará a si mesma.
.........o filósofo esse tem visto sua alma fugir....
De onde vieram os meus ossos? A minha carne? As minhas imagens?
De hoje em diante regresso à pintura e sei que esta terra empolada, coberta por uma fina membrana é para mim fundamental e o maior tributo que lhe dou é devolver-lhe tudo o que ela me deu.
Ao(s) Deus(es) Sábio(s) deixo o meu azul do templo do Chá de Lima
Ana Maria